O corpo gordo feminino como resistência !

Para Denise Sant’anna (1995: 12), “o corpo é, ele próprio um processo. Resultado provisório das convergências entre técnica e sociedade, sentimentos e objetos, ele pertence menos à natureza do que à história.”

Cada grupo social imprime expectativas em torno ao corpo. Para Foucault (1997: 127), em qualquer sociedade o corpo é um locus de poder, sujeito a coerções e domínios ou a experiências de confronto e resistência. “O certo é que as redes do poder passam hoje pela saúde e o corpo. Antes passavam pela alma, agora pelo corpo.” Por este motivo, defendemos que o corpo se reveste de significados e interpretações, ao “corpo se aplicam sentimentos, discursos e práticas que estão na base das vidas sociais.” (Ferreira, 1994: 101).  Segundo Fischler (1995: 69), “(…) há um século nos países ocidentais desenvolvidos os gordos eram amados; hoje, nos mesmos países, amam-se os magros.”

Estar fora do arquétipo atual de belo leva qualquer indivíduo a sentir-se excluído, triste e inconformado com seu próprio corpo e essa insatisfação movimenta um mercado bastante diversificado que inclui academias, moda, cirurgias, alimentação, remédios, aparelhos, etc. O que efetivamente se vende é a possibilidade de se permanecer vivo, belo e jovem, mas, para tanto, a magreza se sobressai como um valor em si mesmo.

Vivemos em uma época de “lipofobia” que está diretamente ligada a uma “obsessão pela magreza, sua rejeição quase maníaca pela obesidade.” (Fischler, 1995: 15). A pessoa gorda representa um peso socialmente inadequado e passa a ser percebida por meio de uma imagem negativa.

“Nossa cultura de valorização da magreza transformou a obesidade em um símbolo de falência moral. Denota descuido, preguiça, desleixo, falta de disciplina. Também denota pobreza (…).” (Brown, 1998). Segundo Sant’anna (2014), nos Estados Unidos, em 1926, um médico chamado Leonard Williams escreveu um livro intitulado “Obesidade”, no qual os indivíduos mais pesados eram associados a um caráter ávido e repulsivo, para o médico, ninguém tinha o direito de ser gordo. Esse tipo de discurso ainda continua nos dias atuais e é confirmado e atualizado, generalizando a tendência de excluir todo gordo dos espaços sociais conformados a um discurso majoritário.

Contudo, há uma reação a essa padronização e a sua imposição, como podemos observar através de movimentos sociais e ativismos variados genericamente classificados como movimentos antigordofobia.

A gordofobia é uma maneira de discriminação, “Estruturada e disseminada nos mais diversos contextos socioculturais que consiste na desvalorização, estigmatização e hostilização de pessoas gordas e seus corpos. Os comportamentos gordofóbicos geralmente reforçam estereótipos e impõem situações constrangedoras, degradantes com fins segregacionistas”. (Arraes, 2015).

No cotidiano, a gordofobia causa dificuldades em enfrentar a estigmatização, pois frequentemente o discurso preconceituoso vem ocultado no discurso de valorização da saúde e revestido de argumentos aparentados de medicina.

A ideia de preocupação com a saúde de quem é gordo já demonstra indícios de gordofobia, uma vez que se presume que aquele sujeito é doente só por estar acima do peso considerado ideal, enquanto pessoas magras não são abordadas e questionadas a respeito de seus níveis de pressão arterial por exemplo. Se a magreza torna-se ideal de saúde, ser gordo, além de esteticamente desvalorizado, torna-se uma patologia.

Em contraposição a essa opressão, que afeta, sobretudo pessoas do gênero feminino, tem sido criados canais de ativismo cibernético tendo como protagonistas mulheres que se propõem a “representar” os corpos gordos de maneira positiva.

Dentro dessa discussão, se faz urgente refletir sobre o corpo gordo “despadronizado” da exigência vigente na produção de uma subjetividade capitalística. (Guatarri; Rolnik, 1996), verberando outro modo de ser e estar no mundo, admitindo um corpo diferente ao imposto como padrão.

Para Louro (2015: 15), a expressão que fabrica o que é ser mulher e o que é ser homem é sempre destacada nos corpos, através do contexto que determina cultura e, por isso, são socialmente estabelecidas. Assim sendo, deixar claro que as diferenças entre homens e mulheres não se dão somente através de definições biológicas pode parecer óbvio, porém, possibilita um entendimento sobre o corpo como “produzido na cultura e pela cultura”, transcendendo o olhar naturalista com que inúmeras vezes o corpo é explicado e, muitas vezes tratado.

Não existe nenhuma justificativa legítima de natureza biológica ou histórica para o mito da beleza. O que ele está fazendo às mulheres hoje em dia é consequência unicamente da necessidade da cultura, da economia e da estrutura do poder contemporâneo de criar uma contra ofensiva contra as mulheres. Se o mito da beleza não se baseia na evolução, no sexo, no gênero, na estética, nem em Deus, no que se baseia então? (…) O mito da beleza na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência. (Wolf, 1992:16-17).

Desse modo, a noção de um corpo conformado ao que se considera belo e saudável exige do sujeito muito mais do que a exibição do corpo magro e malhado, pois é exigido um combo de comportamentos a serem seguidos, incluindo práticas de consumo, padrões de gênero e uma episteme do próprio significado da corporalidade.

O MEU CORPO É RESISTÊNCIA.

A aceitação do próprio corpo com a concomitante despadronização da concepção de beleza é um processo que dura a vida inteira e nunca aparece como algo fácil ou indolor.

O corpo é social, isto significa que “O corpo está submetido à gestão social tanto quanto ele a constitui e a ultrapassa.” (Sant’anna, 1995: 12). Entender o corpo como instrumento para constituição de uma subjetividade vem ao encontro do entendimento de Guatarri e Rolnik (1996) que nos advertem para uma “subjetividade capitalística”. Todos somos co-produtores dos padrões do sistema vigente.

O indivíduo, a meu ver, esta na encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade. Entre esses componentes alguns são inconscientes. Outros são mais do domínio do corpo, território no qual nos sentimos bem. Outros são mais no domínio daquilo que os sociólogos americanos chamam de “grupos primários” (o clã, o bando, a turma, etc.). Outros, ainda, são do domínio da produção de poder; situam-se em relação a lei, a policia, etc. Minha hipótese é que existe também uma subjetividade ainda mais ampla: é o que chamo de subjetividade capitalística. (Guattari; Rolnik, 1996: 34).

Para os autores, a cultura de massa é vista como elemento fundamental da “produção de uma subjetividade capitalística”, já que é essa cultura que produz indivíduos normalizados, “articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão.” (Guattari; Rolnik, 1996: 16). Mesmo que inconscientes, co-produzimos esse modo de vida, padronizando pensamentos, modos de agir, comportar, andar, falar, ver, estar e saber. Contudo, é possível produzir subjetividades dissidentes:

No Brasil, apesar de o país estar comprometido com um processo capitalístico e estar em vias de tornar-se uma grande potencia, há imensas zonas da população “não garantida” que escapam a esse tipo de esquadrinhamento, a esse tipo de produção de subjetividade, e isso é muito importante. (Guattari; Rolnik, 1996: 58).

Ainda para os autores,

“O que vai permitir o desmantelamento da produção de subjetividade capitalística e que a reapropriação dos meios de comunicação de massa se integre em agenciamentos de enunciação que tenham toda uma micropolítica e uma política no campo social. Uma rádio livre só tem interesse se ela é vinculada a um grupo de pessoas que querem mudar sua relação com a vida cotidiana, que querem mudar o tipo de relação que tem entre si no seio da própria equipe que fabrica a radio livre, que desenvolvem uma sensibilidade; pessoas que tem uma perspectiva ativa a nível desses agenciamentos e, ao mesmo tempo, não se fecham em guetos a esse nível.” (Ibidem, 1996: 47).

Guattari; Rolnik (1996: 46) menciona a revolução molecular como produção “não só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si própria, tanto no campo material, quanto no campo subjetivo.” Há, portanto uma resistência social quando saímos desse domínio normatizado e partimos para outro lugar de criação e reflexão do corpo como ele é e do que pode ser.

Aceitar, o corpo como ele é ou produzi-lo de modo criativo, pode provocar mudanças nas concepções de beleza, saúde e felicidade, e podemos considerar esse processo uma expressão de resistência a corporeidade capitalística, já que transfere o indivíduo para outra lógica de estar e ser no mundo.

Eliminar o gênio é a preocupação manifesta. Poderíamos nem levar em consideração, se fosse apenas o gênio que estivesse em questão; mas não se trata apenas do gênio, é a nossa originalidade individual, a genialidade singular que todos possuímos, cuja eficácia, cuja existência são colocadas em questão; porque todos nós, de qualquer lugar, dos mais obscuros aos mais famosos, inventamos, aperfeiçoamos, variamos, ao mesmo tempo que imitamos, e não há sequer um de nós que não deixe uma marca profunda ou imperceptível, em sua língua, em sua religião, em sua ciência ou sua arte.  (Tarde, 1898: 35 apud Lazzarato, 2006: 150).

Lazzarato (2006) propõe deslocar as noções de produção e de trabalho na centralidade teórica propostas pelo marxismo para discutir o capitalismo e coloca a noção de invenção como importância fundamental nessa discussão. O valor, para esse autor, está quando se inventa algo, quando se cria uma nova maneira de estar, pertencer e ser no mundo.

Amar o próprio corpo pode transformar a forma de um indivíduo pensar e estar no mundo, reflexões reverbera uma revolução na criação de outro modo de estar, viver e ser na vida. Posicionamento esse que, através da aceitação e respeito com seu próprio corpo, possa acontecer inúmeras libertações que mude ou pelo menos abale a subjetividade capitalística dos indivíduos que experimentam padronizações severas corporais desde suas infâncias. (Jimenez-Jimenez; Abonizio, 2017:10).

A proposta de Michel Foucault de subordinar a existência cotidiana a um denominador estético,

[…] o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições estatais, mas de nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização que está vinculado a ele. Precisamos promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de individualidade que tem sido imposta a nós há vários séculos. (Foucault, 1983: 216).

Esse “acontecimento” que citamos como encontro com seu próprio corpo nessa sociedade faz referência ao que Lazzarato (2006) apresenta numa discussão ontológica ao colocar o “acontecimento” como ponto focal de invenção social, de criação de mundos possíveis, defendendo assim, o processo de experimentação e criação. O caráter imprevisível e arriscado do acontecimento é ressal­tado, e o exemplo-mor do acontecimento político são os movimentos de Seattle em 1999. Através desta refundação ontológica, trata-se de refutar a “filosofia do sujeito”, atribuída a autores como Kant, Hegel e Marx, em favor da “filosofia da diferença”, cuja genealogia que passa por Leibniz, Tarde, Bergson, Deleuze e Félix Guattari. “Acontecimen­tos, não mais essências: a ruptura é radical.” (Ibidem, 2006: 54).

O ato de criação sendo uma singularidade, uma diferença, uma criação de possibilidades, deve ser distinguido de seu processo de efetuação (de repetição e propagação pela imitação) que faz dessa diferença uma quantidade social. A efetuação ou propagação da invenção através da imitação expressa a dimensão corporal do acontecimento, sua realização nos agenciamentos espaço-temporais concretos. (Lazzarato, 2006: 45).

Elucidando a ideia do corpo que é resistência a padronização estética capitalista e, tornando-se capacidade do acontecimento político de empoderamento, acaba-se manifestando uma vontade de oposição ao que já se vive na sociedade de controle, capturando e revelando fluxos de crenças e de desejos contra a naturalização do sistema e reafirmando a revolução que o indivíduo pode se propor na abertura de uma possibilidade a novos mundos possíveis.

O mundo possível existe, mas não existe mais fora daquilo que o exprime: os slogans, as imagens capturadas por dezenas de câmeras, as palavras que fazem circular aquilo que “acaba de acontecer” nos jornais, na internet, nos laptops, como um contágio de vírus por todo o planeta. O acontecimento se expressa nas almas no sentido em que produz uma mudança de sensibilidade (transformação incorporal) que cria uma nova avaliação: a distribuição dos desejos mudou. Vemos agora tudo aquilo que nosso presente tem de intolerável, ao mesmo tempo que vislumbramos novas possibilidades de vida.  (Lazzarato, 2006: 22).

Segundo Baquero (2012), pode-se pensar no conceito empowerrment ou em português o empoderamento de sujeitos, em suas duas formas: individual e coletivo. O primeiro caso, segundo a autora, diz respeito à análise psicológica, como o indivíduo se vê e procura recursos para modificar sua vida, assim, ele tem condições de se empoderar em autoestima, auto-afirmação e autoconfiança. Já a forma coletiva pode ser compreendida em dois níveis, um organizacional, que diz respeito à autonomia e participação de colaboradores em uma organização, implicando decisões e participações em coletivo; outro comunitário, relacionado à união de indivíduos desfavorecidos que procuram meios de melhorarem o ambiente em que vivem, “[…] buscando a conquista plena dos direitos de cidadania, defesa de seus interesses e influenciar ações do Estado.” (Baquero, 2012: 178).

Sardenberg (2006), em sua análise numa perspectiva feminista, afirma que o empoderamento deve ser visto de forma coletiva, já que somos seres sociais e construídos a partir do meio que vivemos. Contudo, Mosedale (2005) apresenta uma discussão, na qual reitera que não há como uma pessoa empoderar outra, já que o empoderamento está intrínseco a auto-reflexão, o que alguém pode é ajudar, apoiar e/ou mostrar como se podem criar meios para essa autonomia, pois o empoderamento é um processo e talvez nunca exista algo acabado e absoluto, é uma construção com altos e baixos, isto é, uma busca, encontrar uma auto-reflexão sobre o emancipar-se, aceitar-se é algo que dura a vida toda.

Segundo Shirin Rai (2002), o empoderamento para o movimento feminista está entendido como o oposto ao poder, pois essa ação deve estar focada nos oprimidos e não nos opressores, já que se entende o poder como capacitação, competência para as mulheres e nunca superioridade a algo ou alguém. Srilatha Batliwala (1994) mostra que foi a partir das criticas feministas do terceiro mundo que chega o resultado do conceito de empoderamento. “A tomada de consciência não se dá de forma isolada, mas através das relações que os homens estabelecem entre si, mediados pelo mundo.” (Baquero, 2012: 182).

Entendemos, portanto que empoderamento feminino é um processo que parte de uma busca por ações e conhecimento para encontrar força e poder sobre si e conseguir se emancipar de opressões que acontecem em nosso entorno e nos tornam oprimidos e tristes com o que somos. Ao contrário, o processo de empoderamento faz com que percebamos essa opressão e o quanto isso pode nos fazer mal e assim, encontrar novos modos de pertencimentos às instituições e instituir novos arranjos sociais.

O empoderamento da gorda passa por deixar de se sentir inferior e/ou excluída e entender que o preconceito e exclusão do gordo na sociedade, acontecem por sistemas de padronizações sociais que geram lucros, e gostar de como você é, e não de como a sociedade gostaria que você fosse, é emancipar-se.

Crescemos vendo e identificando em nós, o corpo gordo como algo ruim, feio, repulsivo e, portanto indesejável. Nós, mulheres gordas desde sempre associamos nosso corpo como algo que ninguém pode ver e aceitar como normal, e pior ainda como belo. Foucault (1988: 180), explica “(…) Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder.”

Muitas vezes ouvi palavras que desaprovavam meu corpo e imposições de que deveria buscar outra forma de ser e estar no mundo, por não me encaixar dentro de um corpo magro. No dia a dia existe um fuzilamento para nunca ser grande. Note que sempre estamos vendo na TV, revistas, net truques para afinar, diminuir, disfarçar a barriga, o rosto rechonchudo, a coxa larga, não importa o que, mas todas as partes devem ser magras e finas para serem belas.

Invisível, disfarçado e escondido o corpo gordo deve ficar e quando aparece, sempre carregado de estigma, são pessoas tristes, frustradas, desengonçadas, engraçadas, repulsivas, preguiçosas e relaxadas.

Dessa maneira, as ativistas de forma geral, procuram sair desse padrão e buscar outro caminho de estar e se perceber no mundo, para muitas delas parece importante perceber-se como gorda, usar o titulo de gorda como estratégia de autodenominação positiva e nunca negativa. O termo Gorda deve ser percebido como um adjetivo bom e que deve aparecer e existir, se deve aceitar para ser visível e estar presente na sociedade. Quando arrancamos de nós esse sentimento de horror ligado ao adjetivo Gordo, estamos nos tornando resistentes e desobedientes dissidentes da norma imposta por uma sociedade que padroniza e controla corpos e desejos, que define o belo e o saudável.

É como se fosse uma nova maneira de se mostrar ao mundo, um aparato de construção social corporal, porque existem jeitos de observar que fabricam corpos, continuamente. Eu acrescento, existem maneiras de olhar que fabricam desejos e belezas. A aposta será construir novos corpos, novos desejos, novas belezas. A ideia é mostrar que existimos e somos como qualquer outra pessoa, choramos, sorrimos, trabalhamos, transamos, enfim não somos monstros repulsivos como a mídia apoiada pelo discurso médico nos apresenta.

Dessa maneira, empodera-se quando se entende que ser gorda é estar fora de uma normalidade corporal, e isso é o que nos torna divergentes a essa norma, desvendar nosso olhar preso às normas e perceber quais mecanismos sócio-culturais podem estar por trás na busca de um corpo “normal” e quanta disciplina e normatizações nossos corpos devem suportar para ser o que se deseja que os corpos aconteçam.

Precisamos narrar em primeira pessoa, tanto no singular quanto no plural, a história de nossas realidades corporais. O argumento de ficção não impossibilita as ideias de trajetória, de realidade, de experiência corporal. Esta realidade tem que ser contada, coletivizada. É necessário recuperar essa experiência, admitir que somos vulneráveis e entender que essa é a condição do ser, e que não se pode ser sem se expor, porque existimos interligados aos outros. É importante reivindicar estratégias que partem da vulnerabilidade, de colocar nela o poder de transformação. Desmontar o discurso que exige que sempre sejamos fortes e valentes, poderosas. Aceitar-nos, amarmos a nós mesmas, estar em sintonia com um mundo que pede que estejamos infalivelmente prontas e saudáveis para assumir as tarefas de produção e reprodução. Este mundo aí de fora que pede que sejamos funcionais. E não penso em metas, nem em aceitação, nem em gostar, nem em convencer ninguém, porque não acredito em redenções nem evoluções, nem na barbárie convertida em civilização. Acredito em buscas, em paixões e atritos agonistas da minha própria carne, que vinculada a outras, tem o enorme potencial de fazer de nossas existências um lugar mais habitável e feliz, abrindo espaço para indomáveis formas de habitar nossos corpos. (Massom, 2014).

O corpo, para Foucault (1987), está inserido numa teia de poderes que lhe ditam proibições, obrigações e coerções que acabam por determinar gestos e atitudes e, portanto delimitam as práticas e mecanismos na construção do corpo inteligível em uma estrutura sócio política de utilidade e docilidade.

Cada grupo social imprime expectativas em torno ao corpo. Por este motivo que entendemos que o corpo reveste de significados e interpretações, ao “corpo se aplicam sentimentos, discursos e práticas que estão na base das vidas sociais.” (Ferreira, 1994: 101).

Dessa maneira, a quebra da normatização de corpos magros como o único aceito e valorizado, a nosso ver nessa pesquisa, pode transformar uma mulher triste e infeliz em um indivíduo politicamente resistente a uma padronização que a mesma percebeu que não se encaixa, utilizando essa característica para resistir ao padrão e se auto-afirmar como alguém que existe e merece viver como qualquer outro corpo na sociedade.

Nossa proposta nesses estudos é despertar a discussão sobre a gordofobia e o corpo gordo feminino na sociedade contemporânea, dessa maneira entender as relações que existem entre corpos, gênero, política, ativismos, obediência e normatização social. Diante das muitas exigências de submissão às normas estéticas tem surgido uma resistência feminina em não aceitar e quebrar essas normatizações corporais.

O que temos enxergado  são mulheres que sofreram com seus corpos, que não fazem parte desse padrão estético feminino e conseguiram se libertar dessas exigências sociais. Por meio de conversas, leituras, movimentos feministas, mulheres começaram a entender que toda essa normatização do corpo magro é uma utopia e todas sofriam com a busca de algo que nunca poderia ser alcançado. Algumas delas não se declaram ativistas, mas de alguma maneira também buscam empoderar-se e estar no mundo de maneira distinta ao que já esteve.

A partir da dificuldade em aceitar o próprio corpo como ele é, começam a surgir reflexões sobre a possibilidade de ter autonomia e aceitar o corpo como resistência, dentro a essas ações, do micro ao macro, começam a surgir inúmeros movimentos de mulheres que acreditam que seus corpos são livres e que, ao invés de ficarem sofrendo, invisíveis e excluídas em seus sofás, lutam pela aceitação e, assim, transformam seus corpos em corpos políticos, revolucionários e felizes. Como já dito, Michel Foucault esclarece que o corpo foi descoberto como objeto e alvo do poder. Ele ganha atenção quando é percebido como algo manipulado, modelado, treinado e obediente.

O que se percebe é que o empoderamento pode partir do coletivo para o individual, o movimento pode ajudar a mulher individualmente através de uma auto-reflexão se empoderar para se tornar ativista e empoderar outras mulheres. Ou seja, sou ajudada no coletivo a me libertar dos padrões que me fazem sofrer e quando consigo me libertar, acontece uma transformação com a maneira que me percebo para poder ajudar outras mulheres a passarem pelo mesmo processo.

Assim, acontece um trânsito não linear nas passagens entre o mundo virtual para o mundo físico, se começa no empoderamento, desabafos e identificações, para depois o enfrentamento na vida cotidiana nas escolas, praias, shoppings, locais de trabalho, festas, etc.

Apesar de toda cobrança social sobre corpos perfeitos, existem mulheres do mundo todo lutando em sentido contrário aos interesses empresariais de impérios como light diet, cosméticos, academias, etc. Tais mulheres propõem outro modo de ser e estar no mundo, outras sociabilidades, outras corporalidades, buscando o empoderamento de seus modos de ser, que estão fora dos padrões, libertando-se da opressão estética na subjetividade capitalística.

Referências Bibliográficas

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Texto publicado no Todas Fridas:

http://www.todasfridas.com.br/2018/03/03/o-corpo-gordo-feminino-como-resistencia/

Escrito por Maria Luisa Jimenez Jimenez

Publicado por LUTE COMO UMA GORDA

O Projeto Lute como uma Gorda, surgiu com a necessidade de levar para fora da academia a discussão sobre GORDOFOBIA e os Corpos Gordos femininos, essa ideia é uma extensão-ação, anexa ao espaço virtual (Istagram/Facebook), etapa importante das investigações de doutoramento da idealizadora do projeto. A questão de discussão central, de todas as ações deste projeto estará na provocação da reflexão sobre a estigmatização do corpo gordo feminino em sociedade e suas consequências. Como forma de chamamentos e provocações, para as questões da Gordofobia em nossa sociedade, desenvolvemos rodas de conversas, Workshops e Minicursos Temáticos; Assessoria para profissionais de diversas áreas, Distribuição de Cartilhas Informativas, Artigos, Redes Sociais, etc.

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